29 de dezembro de 2013

A Cegonha

  Foi naquela tarde de verão. Morávamos então numa pequena travessa da Rua João Luís Alves. Carmen estava às vésperas de ganhar o segundo filho.
Claire, então com menos de três anos, estava ao meu lado. Juntos conversávamos, sentados na soleira da porta. Ela, com os cabelos soltos, a todo instante passava as mãos por eles deixando transparecer uma vaidade precoce própria das mulheres.
De short e camisetinha sem mangas, contava-me causos e causos. Daquela cabecinha fazia surgir um mundo de fantasias e histórias fascinantes.
A boneca “Nini” não mais queria ficar perto do “Zeca Chorão” (era um bonequinho de borracha que estava sempre com o rostinho em lágrimas e beicinhos estendidos, como que estivesse num eterno choro).
O Bambi, aquele bichinho que ela ganhou no sorteio durante a festa na porta da igreja, já não podia servir de cavalinho para ela, estava crescendo. Ela queria trocá-lo por uma bicicleta. Mas a troca ficaria por conta do Papai-Noel.
Ali, pai e filha conversavam como se estivessem tratando de sérios negócios.
De repente, surgiu Dona Amélia - uma senhora já com seus 60 anos - trazendo nos braços a netinha caçula de 10 meses.
Toda sorridente e orgulhosa da neta aproximou-se de nós. O bebê degustava sua chupeta, enquanto coçava aquela cabecinha mostrando seu penteado estilo “Pedrita”. Começamos, então, a falar sobre o futuro bebê.
Dona Amélia aproximou-se de Claire e perguntou- lhe:
- Você quer um irmãozinho ou uma irmãzinha?
Toda tímida, ela nada respondeu. Apenas baixou os olhos e ficou a riscar o chão com um pedacinho de madeira, como quem quisesse deixar ali sua resposta.
- Então, benzinho, a cegonha vai trazer um irmãozinho para você? - insistiu Dona Amélia.
Claire levantou os olhos e fixou-se na bondosa senhora. Depois me puxou a cabeça e aproximou seus lábios de meus ouvidos e disse bem baixinho:
- Papai, você precisa dizer a ela que o nenen está na barriga da mamãe e não na barriga da cegonha.
Deixei-me cair na gargalhada. D. Amélia, sem entender, acompanhou-me...


J. C. Paula

15.6.86

15 de novembro de 2013

Curiosidade: Como surgiu a expressão "gol de letra"? - 29


A expressão "gol de letra" nomeia o gol em que o atleta trança as pernas como quem faz a letra X e muda o pé que chuta. Quem batizou a jogada foi o jornalista Mário Filho, o criador da expressão "Fla-flu" e irmão do inesquecível Nélson Rodrigues.
O gol de letra veio ao mundo num jogo pela oitava rodada do segundo turno do campeonato carioca de 1942 no estádio das Laranjeiras, entre Fluminense e Madureira.
O time da casa ostentava o título de bi-campeão da cidade e era forte candidato ao tri-campeonato. O Madureira, também conhecido como tricolor suburbano, nada mais tinha a fazer na competição que cumprir tabela.
Seu time, porém, era muito bom, sobretudo o ataque onde despontava o trio Lelé, Isaías e Jair (da Rosa Pinto). Os três faziam com a bola o que queriam em talentosas jogadas que surpreendiam os adversários e arrancavam risos dos torcedores.
Na tarde de 2 de agosto, o trio estava infernal. O Madureira, para assombro geral, aplicou uma sonora goleada de 4x1 no Fluminense e o centro-avante Isaías foi o autor de um gol que, pela técnica e beleza, até hoje é festejado como gol de letra. O craque chutou a bola com as pernas cruzadas em X e Mário Filho, presente no estádio, não teve dúvida: criou, na hora, a expressão. O tempo transformou a jogada em verdadeira lenda, mas ficou a lembrança da ira da torcida tricolor, que não queria deixar Isaías sair vivo do estádio - na verdade, desejava mesmo era chupar a carótida do atrevido jogador. Terminado o campeonato de 1942, o Vasco da Gama contratou os três atacantes - e, aliás, com eles foi campeão invicto em 1945.

(Márcio Cotrim - Revista Língua Portuguesa - ed. nº 97, Ano 9 - pág. 62)

2 de novembro de 2013

Dificuldades da Língua Portuguesa - XXVII

Sentar-se à mesa
Quando se vai almoçar ou jantar, senta-se à mesa, isto é, junto à mesa. Só devemos usar a preposição em com o verbo sentar, quando este significa "colocar o traseiro sobre": sentou-se na cadeira, no sofá, no chão.  Portanto, quando estamos com frio, não sentamos no sol, e sim sentamos ao sol.

Seja
Cuidado para não cometer um erro de ortoepia* ao pronunciar essa palavra. Seja e nunca seje. Seja é uma forma verbal do verbo ser que aparece nos seguintes tempos:
presente do subjuntivo: sejas - seja;  imperativo afirmativo: seja você;  imperativo negativo: não seja você.
*Ortoépia ou ortoepia é a parte da gramática que trata da pronúncia correta das palavras.

Gostar
O verbo gostar exige a preposição de.  Havendo pronome relativo antes da palavra que rege preposição, esta se desloca para antes do pronome relativo.
O amigo de que mais gosto é Paulo. (quem gosta, gosta de)
O filme a que assisti me agradou.  (quem assiste, assiste a)
A pessoa em quem confiava me abandonou. (quem confia, confia em)
A colega por quem tenho simpatia é Lúcia. (quem tem simpatia, tem simpatia por)

ATENÇÃO
Um vício de linguagem bastante comum (barbarismo*) é notado na forma de grafar ou de pronunciar uma palavra. Duas das palavras mais comuns é:
compania  em vez de  companhia.  (Companhia de Aviação = Cia. de Aviação)
rúbrica  em vez de rubrica.  (Coloque à margem do papel sua rubrica).
*Barbarismo vem do grego (barbarismós) e deriva do adjetivo bárbaros, que significa "o que é estrangeiro", "grosseiro", "selvagem". Por isso barbarismo também refere-se ao emprego de palavras ou termos estrangeiros: curriculum vitae  em vez de  currículo;  chance  em vez de  oportunidade.

Alguém Especial

para Carmen Lúcia


Tenho guardado na memória e no coração:
Cada olhar brilhante que trocamos,
Cada sorriso feliz que sorrimos...
Cada aperto de mão que nós demos.
Cada mensagem enviada,
Cada palavra dita...
Cada lágrima de alegria chorada
E cada música ouvida
E cada conversa que tivemos
Dentro da amizade, cumplicidade
e afinidade tão grandes...
Seria uma emoção de invadir o coração
Saber que você guarda sempre em sua memória:
Que eu a amei, a amo e a amarei...
Pois não há nada que afaste um grande amor.
Nem tempo que faça esquecê-la,
Nem barreiras que não sejam vencidas por Deus.
Mesmo que hoje você não consiga ver que é muito especial...
Minha amiga, minha namorada, minha esposa
Você é muito, mas muito especial para mim.

J. C. Paula

O Pudim

Claire O. Silva Quirino


Nenhuma outra sensação me marcou tanto na vida afora quanto o doce suave e a textura tenra do pudim de leite da minha avó. Nunca comi nada tão delicioso. A receita é simples e ela a ensinava a quem quisesse. Ninguém, porém, alcançou o resultado a que ela sempre chegava, talvez porque ela própria era suavemente doce e macia, mas surpreendentemente marcante.
O pudim sempre esteve presente, no dia a dia ou nas comemorações familiares. Quando os netos cresceram e saíram para ganhar o mundo, era com o creme que ela nos recebia. Até da nossa última conversa o pudim estava na pauta. "Eu tenho 88 anos! Já não presto pra nada mesmo. Nem um creminho eu posso fazer para receber os netos!" Acho que foi a única vez que a vi de fato se queixando de algo... de não conseguir mais fazer pudim!
Desde que ela se foi, há seis meses, não consigo comer pudim.
Ontem, a imensa saudade levou-me à cozinha. Misturei os ingredientes ouvindo sua voz "o segredo é bater tudo na mão, bem devagar..."  Calda derretida, caldo espumante. Forno ligado, dois dedos queimados. Enquanto o calor cozia aos poucos o doce, eu me recriminava pela ousadia.
Hoje, desenformei a sobremesa e ofereci-a a meus filhos. "Hummm! Eu amei esse pudim, mamãe! Quero mais dois pedaços!" Com os olhos brilhando e cheios de doçura que só as crianças e as avós têm, Bruno me perguntou: "Por que você está chorando, mamãe? Não posso comer mais?"
27/7/2013


8 de outubro de 2013

Utopia - II

Abra a cortina que o tempo fechou
Vá encenar
Os atos que a sua sina guardou
Pra lhe ensinar navegar
Se entregar ao mar
De todos os sonhos que há sonhou.
Deixe as mãos de o destino escrever
E traçar a história que é sua.
Vá encontrar
O seu lume e brilhar
Descobrir que no céu com estrelas
É lá que é seu lugar.
Vá fantasiar, revelar
a imaginação
e voar com as asas do coração.
Ele vai lhe ensinar a navegar
E se entregar ao mar
De todos os sonhos que já sonhou.


21.04.1990

O Fantasma do Tiro de Guerra


O ano era 1965. Nesse ano eu prestava o serviço militar. Nossa turma constava de 75 atiradores. A sede do TG 71 (hoje TG 04/04) até hoje, fica na Avenida Governador Valadares, bem no centro de Alfenas. 
Foi uma época bastante feliz. Tínhamos instruções diariamente às 5 horas. Aos sábados e domingos, instrução de campo às 7 horas.  Não tínhamos sequer um dia de folga durante a semana. 
Apesar de feliz, foi um período muito difícil para mim. Tinha que cuidar da loja de minha mãe - Casa Paula - o dia todo e estudar à noite no Colégio de Alfenas, conhecido popularmente como Colégio do Dr. Roque.
Durante o período de prestação do serviço militar, eu contava com amigos excepcionais, unidos e companheiros. Todos apoiavam todos e ninguém denunciava ninguém por coisa alguma. Nosso lema era “se um fosse punido, punidos seríamos todos.”
Quem comandava a turma eram dois sargentos: Gonçalves (cujo nome completo não me lembro) e Eduardo Caetano da Silva. Ambos eram bastante exigentes. Todos nós os respeitávamos com certo medo de punição.
Como eu era um bom datilógrafo, fui nomeado para ficar no PC (Posto de Comando) digitando os documentos do TG. Às vezes ficava a manhã toda, o que me prejudicava no trabalho e nos estudos. Mas, era obrigatório. Tínhamos uma bela fanfarra da qual eu fazia parte. Tocava bumbo e às vezes tarol. Nossa turma era também muito afinada em cantar hinos militares, o que nos rendeu vários elogios por parte dos superiores.
Eu exercia a função de Cabo de Dia. Uma espécie de comandante designado pelos sargentos. Quando ficávamos de plantão, geralmente o Cabo e mais quatro atiradores, eu era o responsável por tudo o que ocorria durante a noite.
Em um desses plantões noturnos, mês de julho, um frio estarrecedor além de fortes neblinas, estávamos lá “de castigo” Édson, Scarpa, Devilson*, Gilberto e eu. Não conseguia dormir.
O TG tinha um pátio bem grande. Havíamos feito a capina e o deixamos limpo. Durante a limpeza, encontramos alguns ossos humanos e pedaços de lápides. A verdade é que ali havia sido um cemitério em final do século XIX. Devilson se assustava muito fácil e dizia sempre que “não devíamos brincar com os mortos.”  Foi a dica.
Durante aquela madrugada, chamei pelo Scarpa. Ele era gordo e forte. E disse a ele:
- Vamos pregar um susto no Devilson?
- Como? indagou.
- Você fica atrás daquela mureta no final do pátio e esconda. Quando eu falar com o Devilson, você imita uma alma do outro mundo... (risos)
E ele topou.  Chamei pelo colega, era por volta de 3 horas da manhã, e disse:
- Estou ouvindo vozes no pátio do TG. Venha comigo para ver se descobrimos alguma coisa.
Todo trêmulo e sempre murmurando “não brinque com essas coisas”, nos aproximamos do pátio e eu disse.
- A voz saiu dali do fundo. Tente ouvir.
Neste momento, Scarpa soltou um gemido fantasmagórico.... “vocês profanaram meu túmulo.... vão pagar por isso....” Devilson, apavoradíssimo e trêmulo, quase chorando:
- Eu falei... eu falei que não se deve brincar com isso. Vou-me embora daqui. Vou mesmo...
- O que aconteceu? gritei. Não ouvi nada.
E saiu em disparada direto para casa. Nem quis mais cumprir o restante do plantão.  Claro que eu tive que colocar no livro de ocorrências uma justificativa pela saída dele. Apenas narrei que ele alegou estar ouvindo vozes e que, com muito medo, saiu do TG.
No dia seguinte narrei o fato ao Sargento Caetano que, entre risos, não acreditava no fato. Chamou pelo Devilson que contou a ele a história do “fantasma” dizendo que não mais dormiria ali, mesmo que isso custasse uma expulsão.
Nunca contamos a ele a verdade.

Junho 2013

 *O nome foi trocado para evitar constrangimento.

Curiosidade: De onde surgiram as palavras "Jubileu" e "Alterosa"? - 28

JUBILEU - A palavra vem do hebraico yobel, espécie de trombeta entre os antigos, com a qual de 50 em 50 anos se festejava um feito. Escravos eram libertados e terras alienadas voltavam aos proprietários primitivos. Era uma instituição caracterizada pela indulgência de dívidas e culpas. Do termo decorre jjubilares, dar gritos de júbilo, aplicado à aposentadoria que se sente ao deixar um nobilíssimo cargo.
ubilar, do latim

ALTEROSA - Município de Minas Gerais. A palavra, um adjetivo, designa alguma coisa elevada, de grande altura. Figurativamente, majestosa, grandiosa, altaneira. O berço do nome da cidade é mencionado no decreto-lei estadual de 31 de dezembro de 1943, que justifica a denominação por seu belo relevo e qualifica o município como cidades das montanhas, alta e majestosa.

11 de junho de 2013

Curiosidade: Como surgiu o Dia dos Namorados? - 27

Segundo a versão mais conhecida, a comemoração teria se originado na Roma antiga, no século III.
O Padre Valentim lutou contra as ordens do imperador Cláudio II, que havia proibido o casamento durante as guerras acreditando que os solteiros eram melhores combatentes.
Além de continuar celebrando casamentos, ele se casou secretamente, apesar da proibição do imperador. Tendo se recusado a renunciar ao Cristianismo, Valentim foi condenado à morte. Enquanto aguardava na prisão o cumprimento da sua sentença, ele se apaixonou pela filha cega de um carcereiro e, milagrosamente, devolveu-lhe a visão.
Antes de partir, Valentim escreveu uma mensagem de adeus para ela, na qual assinava como “Seu Namorado”.
Considerado mártir pela Igreja Católica, a data de sua morte – 14 de fevereiro – também marca a véspera de lupercais, festas anuais celebradas na Roma antiga em honra de Juno (deusa da mulher e do matrimônio) e de Pã (deus da natureza). Um dos rituais desse festival era a passeata da fertilidade, em que os sacerdotes caminhavam pela cidade batendo em todas as mulheres com correias de couro de cabra para assegurar a fecundidade.
Outra versão diz que no século XVII, ingleses e franceses passaram a celebrar o Dia de São Valentim como a união do Dia dos Namorados. A data foi adotada um século depois nos Estados Unidos, tornando-se o Valantine´s Day. E na idade Média, dizia-se que o dia 14 de fevereiro era o primeiro dia de acasalamento dos pássaros. Por isso, os namorados da Idade Média usavam esta ocasião para deixar mensagens de amor na soleira da porta da amada.
A história do dia dos namorados no Brasil.
No Brasil, é comemorado em 12 de junho a partir de 1949, quando o publicitário João Dória trouxe a ideia do exterior e a apresentou aos comerciantes.
Como junho é um mês de vendas baixas, eles decidiram comemorar a data nesse mês e ainda escolheram a véspera de Santo Antônio, o santo casamenteiro como o Dia dos Namorados.
A ideia inicial pode ser sido um tanto quanto interesseira, afinal, escolheram o mês de junho por ser um mês fraco de vendas, no entanto seja qual for a data que se comemora um namoro, um a paixão, um relacionamento a dois, o importante é o amor e o carinho que são demonstrados, compartilhados e vivenciados por um casal. 
[http://www.esoterikha.com/dia-dos-namorados/historia-do-dia-dos-namorados.php]

27 de abril de 2013

Curiosidade: De onde veio a expressão "passar o pente fino"? - 26


Passar o pente fino
Expressão que, literalmente, designa a ação de usar o lado fino do pente para conseguir retirar sujeiras no cabelo, como caspas e piolhos.
Em termos figurativos, significa afastar as pessoas ruins de dado grupo ou, no âmbito comercial, eliminar muambas que estejam prejudicando a atividade da empresa.
No campo fiscal, a "malha fina" é o minucioso exame, que procura corrigir erros e impropriedades em declarações de renda, o que assusta muita gente quando lhe chega a intimação para o respectivo acerto.
Na história do Brasil, o pente fino teve seu lugar num episódio patético. Quando a família real portuguesa, em 1808, mudou-se para o Rio de Janeiro numa tumultuada e arriscada travessia marítima, as mulheres, que viajavam em precárias condições, foram atacadas por uma epidemia de piolhos, engordados por seus respectivos ovos, as lêndeas - palavra que, aliás, Otto Lara Resende considerava como a mais bela da língua portuguesa, veja você. 
Não teve jeito. Todas as mulheres tiveram de raspar os cabelos, ficaram carecas. Ao desembarcarem no Rio, sua aparência era ao mesmo tempo assustadora mas também - para muitas cariocas da época - uma espécie de dernier cri da moda europeia!
Resultado: boa parte da mulherada do Rio aderiu à novidade, meteu pente à cabeleira e passou a exibir, com apressado orgulho, lustrosas carecas! Foi um espanto, mas, como depois se viu, engano que só serviu para estimular os mexericos de sôfregas Mariquinhas e Maricotas.

(Márcio Cotrim - Revista Língua Portuguesa - nº 90 - 2013 - pág. 60)

17 de abril de 2013

A Luta


Era o ano de 1965. Ali estava eu servindo o Exército. Minha turma era composta de 78 atiradores. Cada um, um amigo. Mas como éramos diferentes!
Dentre eles havia alguns tipos inesquecíveis: Scarpa, gordo, esguio, mas não conseguia fazer barras ou flexões, não suportava nos braços seu próprio peso. Ria de seu próprio físico. Alair, colega de bancos escolares, muito brincalhão, era o famoso Pit. Édson, conhecido por Escovão pelo seu penteado. Zé Augusto, o Gordo, velho amigo de infância com quem convivi na fazenda de seu pai, meu amigo Genaro Paulino. Netto, Nogueira, Wilton, Bellini, Sebastião, Pacheco, Damas e tantos outros.
Damas, ah, ele era muito engraçado na sua humildade. Forte, gostava de mostrar seus bíceps. Trabalhava na Casa Pinto como motorista de caminhão.
No primeiro dia de instrução, estávamos em fila no pátio do TG, quando o Sargento Gonçalves solicitou que os novos atiradores fossem dando um passo à frente, por ordem alfabética. “Os atiradores cujo nome comece com a letra C, um passo à frente”, vociferou o Sargento. Damas foi o único a dar um passo à frente. Sargento Gonçalves, com sua voz de militar, perguntou: “Qual seu nome, atirador?”  Damas, imediatamente em posição de sentido responde em bom tom: “Sebastião, Sargento!”  A gargalhada foi geral.
Mas houve um fato inesquecível. Resolvemos alguns atiradores assistir a um espetáculo de luta livre entre mulheres. Era um circo que estava armado num terreno baldio, próximo ao cemitério, onde hoje se localiza o Ginásio Poliesportivo.
Éramos uns 30 atiradores sentados na arquibancada de tábua que, por sinal, não oferecia muita segurança. No centro do circo estava um ringue onde mulheres musculosas lutavam entre si, numa espécie de telecatch.  Esse tipo de luta era moda nos circos.
Entre nós, estava o Pacheco. Forte, cabelos avermelhados, simples e brigão, mas um ótimo companheiro. Sempre sorridente e alegre. Gostava de contar piadas. Ele dizia que aquilo tudo “era marmelada para embromar o público”. Claro que ele tinha razão. Mas era divertido.
O condutor do espetáculo, em dado momento, grita para a plateia: “Entre vocês há alguém que queira desafiar uma das garotas? O prêmio para o vencedor será de 30 cruzeiros” (um bom dinheiro na época).
Começamos, então, a instigar o Pacheco para que aceitasse o desafio. Depois de muita insistência ele desce da arquibancada  e se oferece como  voluntário para  a luta.  
O aplauso foi geral e os gritos de incentivo partiam de nossas gargantas entre vivas e assobios.
Pacheco subiu ao ringue, de calção e camiseta, mostrando seu físico invejável e seus braços fortes.  Ao centro do ringue ele ouviu as instruções do juiz. Ele estava calado e com os olhos fixos na mulher que desafiara.
Começa a luta! Pacheco mal consegue parar em pé. A mulher o derruba várias vezes e ele continua impassível diante da surra que levava. Foi num desses momentos que o juiz se aproximou e disse: “Você não vai reagir?” Pacheco, com uma paciência incrível, responde: “Não gosto de bater em mulheres.”  “Mas você tem que reagir”, explica o juiz.  Pacheco olha para nós e em alto brado responde? “Então que venham as duas!”
O riso foi geral. Ele levantou os braços para o público, arrancando aplausos,  enquanto as mulheres entravam no ringue.
 A luta recomeça. Duas contra um. Pacheco, em poucos minutos, deixa as duas mulheres estendidas no tablado e indefesas. Vencera!
Descemos todos das arquibancadas e invadimos o picadeiro. Tomamos Pacheco pelos braços e o levantamos como um herói, não sem antes receber o prêmio.
Que noite!
Saímos dali aos gritos de alegria e fomos para o Bar do Orlando, onde “torramos” os trinta cruzeiros em cerveja e tira-gosto.
Onde andará Pacheco?
J. C. Paula

Carlinhos



Amigos, amigos de fato. Amigos para todo momento e para todas as aventuras.  Ele morava ali pertinho, apenas três casas abaixo da minha. Seu apelido: Onça. Não sei porque, mas onça não combinava com ele. Nunca o chamei assim. Pra mim era Carlinhos.
Onde quer que fosse ele me acompanhava, nos bons e maus momentos. Nunca deixamos de ser amigos. Tínhamos a mesma idade. Ele, moreno, esguio, falador, sorridente, filho caçula, assim como eu. D. Zica, sua mãe. Austera mas me amava. Seu pai, Sr. Homero, morreu de repente quando brincávamos na sala de sua casa.
Triste lembrança. Fez a barba, nos cumprimentou naquele momento em que estávamos brincando de carrinhos (esses feitos  de madeira  cujas rodas eram  de carretéis vazios, feitos por nós mesmos). Fez a barba, assobiava naquele momento o “Perfumes de Gardênia”. Como ia me esquecer? Saiu do banheiro, sentiu-se mal e olhou pra nós. Foi seu último olhar. Era 1954.
Rodopiou e foi tombando devagar sobre nossos corpos frágeis. A vida se esvaiu. Nós não conseguimos entender o que havia acontecido com ele.
Quando acordamos para a realidade que se nos despertava naquele momento, lá estava ele de mãos cruzadas sobre o peito, ainda o sorriso a estampar-lhe na face.
Muita gente, todos  curiosos  olhando para aquele corpo inerte. Nós não entendíamos aquilo. Fomos para o quintal da casa e continuamos nossas brincadeiras sem perceber o drama que se desenrolava naquele instante.
O pai de Carlinhos. Não o veríamos mais. Ele partiu.
Passaram-se os dias, nossa vida rotineira continuou. Brincadeiras, estudos também, caça aos passarinhos. Vivíamos um mundo que só era nosso e ninguém se adentrava nele.
Como poderia esquecer do Carlinhos? Não poderia nunca, ele  passou a ser  parte de mim. Amigo e companheiro.
Depois de algum tempo mudou-se para São Paulo. Tornou-se motorista de táxi e nunca mais o vi.
Apenas fui informado que ele faleceu no início de 2012 e foi sepultado em Alfenas.
Vejo-o, sim, nas minhas lembranças.

11 de fevereiro de 2013

Os assaltantes

À noite, aqueles dois assaltantes resolveram entrar naquela casa de praia que estava em reforma. Logo na entrada o primeiro ladrão notou um grande cartaz onde estava escrito:
“Cuidado! Cão antissocial”

- Você não falou que à noite não tinha cachorro aqui. Disse o primeiro marginal.

- Eu disse! Foi o que deu para perceber durante o dia. O dono traz os cães com ele e depois ele os leva de volta para a cidade. Pode ficar tranquilo. Não tem perigo.  Olha! Eu vou por aqui e você vai pelos fundos

- Ok! Disse o segundo bandido. 
- Ok! Concordou o primeiro ladrão.
Assim que eles se separaram o primeiro ladrão foi até os fundos da casa e depois de uns minutos o meliante voltou correndo mais rápido que um raio. Ele passou pelo segundo ladrão e disse:
- Corre mano!... Corre!... Corre!
E saiu correndo mais que raio em direção a rua.
O segundo bandido, atônito, e sem saber o que fazer também começou a correr na mesma direção.
Depois, mais calmos, os dois marginais se encontraram:
- Cara! O que foi que aconteceu? Você viu alguma coisa? Era gente? Era um cachorro? Ele te mordeu?  Perguntou o segundo bandido.
- Não, não era gente não. Eu saí correndo foi por causa do cachorro. Disse o primeiro meliante.
- Cachorro! Você viu o cachorro. Perguntou o segundo bandido.
- Sorte minha que eu não vi o cachorro não. Mano, eu vi foi o prato dele. Cara, nós tivemos muita sorte. Só pelo tamanho do prato em que ele come deu pra ver que se ele tivesse nos encontrado nós estaríamos fritos, não ia sobrar nada para contar história. Disse aliviado o primeiro ladrão.
No dia seguinte, na casa em reforma:
- Ôxente! Ô Juca! Cê viu o que aconteceu com a caixa de massa de cimento? Ela está cheia de marca de pé de gente. 
- Será que entrou ladrão aqui? Perguntou um dos operários.
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29 de janeiro de 2013

Assassinando a Língua Portuguesa - XIX

 " ...amigos e amigas em fevereiro vamos contar muitas historias e vamos fazer muitas reportagens do sobrenatural ´´em alfenas em breve eu paulo e meu parceiro pingo vamos mostrar muitas fotos antigas e relatos verdadeiros você vai se súprieender ´´aguárdem em breve aqui na rádio..."
(Facebook, acessado em 29/1/2013)
 
[concordância, pontuação, acentuação, ortografia.... tanto erro em tão pouco)
 
As postagens de "Assassinando a Língua Portuguesa" são cópias fiéis do que foi (está) publicado em jornais, revistas, rede social,  comentários, etc. A intenção é apenas mostrar o "descuido" e a falta de cultura da Língua Portuguesa ou o descaso que se faz dela. Não tenho, em hipótese alguma, a intenção de criticar ou denegrir a imagem da publicadora.

28 de janeiro de 2013

Fazenda Mato Dentro


Lá se foram os anos. E meus pensamentos divagam. Nesta viagem, retornei ao passado e me deparei pedalando pela estrada que leva a Machado. Estrada sim, pois ainda não havia asfalto.
      A bicicleta, um modelo argentino, leve, de alumínio, freio contrapedal, levava na garupa o Jucelino, amigo de longa data.
     Ainda jovem,  o esforço físico não me deixava  cansado ou ofegante. Lá íamos, apreciando a natureza, em meio a poeira que os carros deixavam, mas felizes, dando gargalhadas, contando causos.
      O destino era a Fazenda Mato Dentro, a 5km de Alfenas, de propriedade do amigo Genaro Paulino, de saudosa memória.
     Aquele casarão se destacava no vale aconchegante, cheiro de mato e de gado. As árvores frondosas, pareciam nos dar boas vindas. A bicicleta corria entre os arvoredos que circulavam aquela estrada campestre. Seu galhos balançavam suavemente ao som dos ventos, que sopravam em nossos rostos juvenis.
     O pomar logo se destacava aos nossos olhos, com seus frutos maduros e variados. Todo tipo de fruta ali estava à nossa espera.
     O casarão que sempre nos via chegar com suas paredes de taipa, suas grandes janelas e portas azuis, sempre abertas, nos convidava a entrar em seu interior.
     Salas e quartos enormes. Aquela saleta, próxima à cozinha, era nosso recanto para os jogos de cartas. Foi ali que Genaro me ensinou a jogar truco.
     Quantas e quantas tardes e noites passamos ali entre risos, gritos e alegrias. Genaro, com toda sua paciência, ensinava-me os truques do truco. Que saudades!
     Descíamos por uma escada que saía da cozinha, em direção ao pátio. Naquele pátio cimentado um grande viveiro. Eu ficava algum tempo olhando a variedade de pássaros ali criados. Os canários eram os que me chamavam mais a atenção, com suas asas amarelas cor de ouro que, ao refletir sob o sol, brilhavam.
     Sanhaços sobrevoavam as laranjeiras e outras árvores frutíferas. Segundo Genaro Paulino, “eram as pragas do pomar”.
     Saíamos os irmãos José Augusto (Gordo), Manuel (Menino), Mário, e Carlinhos, além do Jucelino e eu para os pomares. Espingardinha de chumbo, íamos à caça dos tais sanhaços.
     Conseguíamos caçar entre 3 a 4 numa tarde. Todas as vezes que um pássaro caía, um de nós gritava: “traz o gato”.
     E lá vinham aqueles gatos pardos atrás da caça. Sempre que íamos à fazenda, os gatos nos acompanhavam à espera de suas refeições.
     Dona Olinda, esposa de Genaro, a quem carinhosamente eu chamava e chamo de “tia Olinda”, nos esperava para almoçar.
     Refeição de roça... hmmm.... uma delícia. Seu frango caipira era de dar água na boca. O angu, o quiabo, o feijão novo, tudo uma delícia, sem contar a salada bastante rica e variada. O sabor das refeições ainda as sinto.
     À tarde saíamos a cavalo pelos campos da fazenda, sempre acompanhado de José Dutra. Zé Dutra, como o chamávamos, sempre com sorriso nos lábios e dono de uma paciência invejável.      Adorava futebol. Era um dos membros da diretoria do América F.C. Justa a homenagem dando seu nome a uma das ruas de Alfenas. Seu nome era José Delmiro dos Santos. Até hoje não sei o porquê de “Zé Dutra”.
     Um grande amigo e companheiro das tardes de truco na Fazenda Mato Dentro.
     Durante quase toda minha adolescência frequentei aquele lugar maravilhoso que não sai de minha memória. Não só pelos lindos lugares, mas, sobretudo, pela família Paulino da Costa. Ela fez parte de minha vida. Que saudades!
     - Traz o gato!

10 de janeiro de 2013

Oração Interrompida

Por: Júlio César da Paz
      
       Já passava das 18 horas quando o Zé Broinha cruzou a Praça Getúlio Vargas em direção à Matriz. A loja do Seu Duca, como todos os dias, encerrava o expediente àquela hora. Fechar alguns minutos antes, impossível! Fazer o quê se aquele trabalho era uma bênção e se o dinheiro no fim do mês chegava sem atraso? O proprietário – um segundo pai – era amável, generoso... Mas o salário de sacristão também ajudava, além, é claro, da satisfação em servir à paróquia e a convivência com os padres e os leigos.
       Ouvir os resmungos do Padre Aloísio quase esfriava o prazer do serviço, principalmente quando, fugindo aos argumentos do sacristão, ordenava sem pena:
       “– Quero a igreja aberta às dezoito horas. Quando a primeira alma se ajoelhar para a reza do terço, que todas as luzes sejam acesas, que o altar esteja preparado com os objetos litúrgicos e os sinos toquem, convidando para a missa.”
       Essas palavras faziam tremer o Souza, que corria feito um louco para não contrariar o vigário. Indiferente ao drama do sacristão-balconista, eu, ainda adolescente e despreocupado, ficava à espera dele e acompanhava seus passos apressados para puxar a corda do “Paulino” – o sino da Matriz que me dava tanta alegria quanto bolhas em tirar-lhe o som. Também me deliciava com as doidices da Tereza, nossa querida e indomável cantora, companheira permanente do Zé, que só se deixava irritar se o assunto fosse a Rosária Carvalho ou algo relacionado à sua idade.
       Naquela tarde fria de julho, ela nos acompanhava – vestido azul, xale branco e um embrulho (Deus sabe de quê) nas mãos – trazendo as últimas notícias que colhera na rua quando vinha para a Matriz.
       - Escute, José! O Beg vai se candidatar? Pois é...Vai. E o meu voto é dele, claro! O homem é bom! O assessor dele me contou que ele vai arranjar abrigo pros cães de rua. Ah! Isso é que é coração, não acha, José?
       Ofegante, já subindo a escadaria, Souza concordava com monossílabos e acenos de cabeça mal planejados, praguejando, disfarçadamente, contra a única mulher que o estava esperando para acender as luzes da igreja – a popularmente conhecida Dona Chata. E a Tereza prosseguiu:
       - Mas, o Hesse também é bom! Ah! É muito bom! Pensando bem, meu voto será dele se candidatar-se novamente. Sabe o que me disseram, José? Que ele vai reformar essa praça aí, inclusive a Fonte Luminosa. Que beleza, não é? Essa fonte merece uma restauração. E, pensativa exclamava – Taí! O meu voto é do Hesse!
       E o José, agora, entra na Matriz com pressa e as sandálias a sair-lhe dos pés. Já ouvira uma voz feminina anunciando o primeiro mistério do terço. Lá no fundo, a silhueta era perceptível, graças à luz diáfana que adentrava os vitrais. Para variar, a voz trêmula e a figura magra eram de dona Chata, que comungava diariamente e fazia questão de estar no templo desde àquela hora da tarde. Isso deixava mais aflito o sacristão, acrescentando, é claro, à tagarelice pertinaz da Tereza que não lhe dava trela.
       Entramos os três na sacristia. Souza foi logo acendendo as luzes. Tereza passou reto e foi ao espelho do armário antigo. A peruca pendendo para um lado, deixando ver a mecha branca do cabelo natural. Vaidosa, tirou um pente de osso da bolsa e foi pentear-se, como se estivera num salão de beleza. Quebrou o silêncio, parolando:
       - José, faz anos que, todos os dias, ao entrar na igreja, me deparo com a Dona Chata rezando o terço, quietinha, quietinha. Que mulher santa, não é?! Admirável! Nunca vi tanta fé, tanta piedade numa só pessoa. Você já viu algo assim?
       Malicioso, a ficha do Zé Broínha caiu e, pela primeira vez, ele pôs atenção na fala da Tereza, fazendo-se todo ouvidos e, logo, emitiu seu parecer:
       - Se acho!! Boníssima, esta Dona Chata! Acho mais...Acho não, tenho certeza. Ela tem muito respeito por você.
       - Não diga! Não sabia!!
       - Verdade! Ainda ontem ela me falava de você quando nos viu entrar na Igreja!
       -Estou curiosa! O que foi que ela disse?
       - Ah, ela disse muitas coisas boas a teu respeito. Disse: “– Olha, José, adoro esta mulher que chegou aí com você! É uma excelente cantora, essa Rosária...”
       - Rosária?? Que Rosária?
       - Você! Ah, desculpe-me! Já ia me esquecendo... Ela confunde você com a Rosária Carvalho.
       - Essa mulher está ficando louca?! Canto infinitamente melhor que a Rosária e não me pareço isso aqui com ela...
       Visivelmente contrariada, Tereza pôs-se a morder os lábios – péssimo sinal! O Sacristão, seguro de que se plano não falharia, continuou:
       - Ela me disse, também, que você merece um prêmio pelo bem que faz às crianças e aos animais.
       - Bom, isso ela tem razão. Nunca deixei de cuidar das criancinhas e dos bichinhos da rua e...
       - ... e dela também. Não sabia que você havia cuidado de Dona Chata quando ela ainda era criança, Tereza! Elam me disse isso com lágrimas nos olhos...
       - O quê?? Como cuidei dessa doida? Sou muito mais nova que ela, tenho pouco mais que cinquenta anos...Ela é que é uma velha caduca!
       - Acho que não! – Respondeu o Zé, malicioso. Está completamente lúcida. Lembra-se até que você trabalhou para os padres e que é funcionária dos Pimenta.
       - Isso é demais! Estou me sentindo ofendida. E agora chega! Vou mostrar a essa Chata quem é que sou, de verdade.
       Abriu com fúria a porta da sacristia e desceu os degraus, impaciente.
       Lá embaixo, no primeiro banco, Dona Chata intercalava seu Glória ao Pai com bocejos infinitos, sem perceber a presença da Tereza que chegou pela lateral. Puxando o fio da ladainhas, a cantora interpelava a mulher orante:
       - Então é verdade o que ouvi do José, Chata?
       - Falou comigo, Dona Tereza?
       - Agora é Dona Tereza...Mas, antes, era Rosária Carvalho!!
       - Não estou compreendendo, dona...- e esboçou um sorriso amarelo.
       - Está compreendendo sim, e muito bem! E não me chame de Dona. Sou bem mais nova que você.
       - O que foi que eu fiz?
       - Nada! Apenas me confundiu com uma cantorazinha de terceira e anda dizendo por aí que sou idosa. Mas velha é você! E caduca. Me esqueça, sua chata...
       - Senhor, tende piedade de mim! Eu não fiz nada disso, Dona Tereza, inclusive eu...
       Antes de terminar, um beliscão pôs termo à jaculatória. Sem ouvir os argumentos da outra, Tereza saiu do banco, a alma lavada e a vingança consumada. Entrou na sacristia enquanto eu saía com a chave da torre, mal podendo esperar para puxar as cordas do sino. Passei devagar pelo banco onde estava Dona Chata e fiz genuflexão, quando a ouvi comentar baixinho com uma senhora que acabara de se ajoelhar a seu lado:
       “– Esta cidade está cada dia mais perigosa, muita gente louca solta por aí! Aquela doida – apontou o dedo para a sacristia, de onde se via ao longe a cantora – aplicou-me um beliscão e me disse um tanto que até agora não entendi. Olha o meu braço – e estendeu-o, para mostrar à outra o sinal da beliscadura. – Continuarei frequentando a missa das sete, mas, o terço, vou rezar em casa antes de vir para cá.”
       Minha garotice me fez apressar o passo e tentei conter o riso. O Souza...? Este conseguira marcar mais um ponto nas suas maluquices com a ajuda da Tereza.
       Os dias que se sucederam foram absolutamente tranquilos. O Zé Broinha deixava o emprego às 18 horas e traçava com calma seu itinerário até a Matriz.
       Tereza namorava a Fonte Luminosa, enquanto esperava pelo sacristão com as últimas notícias do dia e com sua indecisão às vésperas das eleições.
       Dona Chata?... Bem! Dona Chata agora rezava seu rosário na porta da casa paroquial e adentrava a Igreja sempre na companhia do vigário, a protestar “– Não se pode mais sair nesta cidade sozinha! Tem muita gente louca solta por aí!...Só gente louca!...”

Tenho saudades da minha infância   Saudades de tempos distantes, pessoas especiais, lugares inesquecíveis, cheiros e prazeres, reco...