20 de setembro de 2015

Dosagem


Tudo começou no dia em que um tropeiro, vindo de longínqua fazenda, chegou naquela cidadezinha do interior.
Era para ele algo raro uma festa no povoado. Ficou observando as pessoas que se locomoviam agitadas. Após alguns momentos de observação, tomou coragem. Pôs-se também a caminhar, acompanhando a massa. Passadas curtas, andar indeciso, caminhava o tropeiro à procura do objetivo que ali o levara.
Ao olhar para sua direita, deparou com a vitrina de uma loja. Ali se encontrava o desejado. Ali estava, bem à vista e tão perto de suas mãos, o objeto cobiçado... um rádio.
Minutos de indecisão. Contemplava o sonhado rádio. Decidido, entrou na loja.
Por trás do balcão surgiu solícito o vendedor. Ao vê-lo ficou atordoado: um padre! Naquele tempo, um padre era algo como que sagrado. No entanto, ali estava, como vendedor da loja, um padre de batina e tudo.
Além de dono da estação de rádio local, também o era daquela casa comercial, onde se vendia um sem-número de coisas.
Apontando para a prateleira de artigos eletrodomésticos, o sertanejo, ainda acanhado, dirigiu-se ao padre:
- Eu vim comprá um rádio, padre. Mas, tem que sê baratinho.
O dono da loja deu uma olhada no tropeiro. Mediu-lhe as posses e decidiu-se rápido. Tinha o que ele desejava: um rádio à bateria, era o último. Poderia vendê-lo bem em conta.
Estipulado o preço, o sertanejo contou as economias que trazia na algibeira da calça remendada, e concordou:
- É, o preço inté qui tá bão. Eu levo o bichinho.
O aparelho foi ligado para experiência.
Logo de início o dono da loja verificou que o rádio estava defeituoso: o dial quebrado. Só sintonizava uma estação. Justamente a sua, a rádio Paroquial. Mas, pelo preço que estava sendo vendido, aquilo não importava. Além disso, entendia ele, a sua estação não era nada má.
O tropeiro seguiu seu caminho, depois que o padre lhe sugeriu que não mexesse naquele botão de sintonia. Mostrou-lhe onde aumentar e diminuir o volume, como se usava a bateria e despachou o tropeiro com rádio e tudo.
A venda fora efetuada um dia antes do Domingo de Ramos. No dia seguinte começava a Semana Santa.
Na distante fazenda, o rádio do tropeiro foi a grande novidade. Gente de toda a redondeza se dirigia ao seu rancho para vê-lo. O sertanejo subiu no conceito da vizinhança.
Domingo de Ramos juntou-se o povo a ouvir as palavras do padre a anunciar a Semana Sagrada.
Depois rezaram acompanhando o cura, cuja voz estridente até eles chegava graças àquele aparelhinho.
Mas a Semana Santa dura sete dias!
Segunda e terça-feira, o tropeiro e convidados ouviram as rezas que vinham da estação de rádio da cidade. Na quarta, acompanharam todo o ofício de trevas. Quinta-feira, ouviram com atenção a cerimônia do lava-pés. Sexta, choraram com a adoração da Cruz e, no sábado, vibraram com o Aleluia.
Foram sete dias inteirinhos de rezas.
Por mais católico que fosse, o tropeiro sentiu-se desiludido. Não fora apenas para rezar que ele fizera economia e comprara o rádio, não.
Por coincidência, ao término da Semana Santa, esgotou-se a carga da bateria. O dono do rádio resolveu ir até à cidade procurar o padre e pedir-lhe que a recarregasse. Ao vê-lo:
- Acabou a bateria? Não há de ser nada. Vou mandar recarregá-la, explicou o atencioso padre, novamente transformado em comerciante.
- Está gostando do rádio? volta o padre.
Segundos de silêncio. Meio sem jeito, o tropeiro respondeu:

- Gostano, inté que tô, seu padre. Mais quiria pidi um favorzinho. Eu gosto muito de rezá, pode crê, mais... será que o sinhô não pudia recarregá esta bateria metade de reza e metade... de umas musiquinha sertaneja?

Tenho saudades da minha infância   Saudades de tempos distantes, pessoas especiais, lugares inesquecíveis, cheiros e prazeres, reco...