10 de janeiro de 2013

Oração Interrompida

Por: Júlio César da Paz
      
       Já passava das 18 horas quando o Zé Broinha cruzou a Praça Getúlio Vargas em direção à Matriz. A loja do Seu Duca, como todos os dias, encerrava o expediente àquela hora. Fechar alguns minutos antes, impossível! Fazer o quê se aquele trabalho era uma bênção e se o dinheiro no fim do mês chegava sem atraso? O proprietário – um segundo pai – era amável, generoso... Mas o salário de sacristão também ajudava, além, é claro, da satisfação em servir à paróquia e a convivência com os padres e os leigos.
       Ouvir os resmungos do Padre Aloísio quase esfriava o prazer do serviço, principalmente quando, fugindo aos argumentos do sacristão, ordenava sem pena:
       “– Quero a igreja aberta às dezoito horas. Quando a primeira alma se ajoelhar para a reza do terço, que todas as luzes sejam acesas, que o altar esteja preparado com os objetos litúrgicos e os sinos toquem, convidando para a missa.”
       Essas palavras faziam tremer o Souza, que corria feito um louco para não contrariar o vigário. Indiferente ao drama do sacristão-balconista, eu, ainda adolescente e despreocupado, ficava à espera dele e acompanhava seus passos apressados para puxar a corda do “Paulino” – o sino da Matriz que me dava tanta alegria quanto bolhas em tirar-lhe o som. Também me deliciava com as doidices da Tereza, nossa querida e indomável cantora, companheira permanente do Zé, que só se deixava irritar se o assunto fosse a Rosária Carvalho ou algo relacionado à sua idade.
       Naquela tarde fria de julho, ela nos acompanhava – vestido azul, xale branco e um embrulho (Deus sabe de quê) nas mãos – trazendo as últimas notícias que colhera na rua quando vinha para a Matriz.
       - Escute, José! O Beg vai se candidatar? Pois é...Vai. E o meu voto é dele, claro! O homem é bom! O assessor dele me contou que ele vai arranjar abrigo pros cães de rua. Ah! Isso é que é coração, não acha, José?
       Ofegante, já subindo a escadaria, Souza concordava com monossílabos e acenos de cabeça mal planejados, praguejando, disfarçadamente, contra a única mulher que o estava esperando para acender as luzes da igreja – a popularmente conhecida Dona Chata. E a Tereza prosseguiu:
       - Mas, o Hesse também é bom! Ah! É muito bom! Pensando bem, meu voto será dele se candidatar-se novamente. Sabe o que me disseram, José? Que ele vai reformar essa praça aí, inclusive a Fonte Luminosa. Que beleza, não é? Essa fonte merece uma restauração. E, pensativa exclamava – Taí! O meu voto é do Hesse!
       E o José, agora, entra na Matriz com pressa e as sandálias a sair-lhe dos pés. Já ouvira uma voz feminina anunciando o primeiro mistério do terço. Lá no fundo, a silhueta era perceptível, graças à luz diáfana que adentrava os vitrais. Para variar, a voz trêmula e a figura magra eram de dona Chata, que comungava diariamente e fazia questão de estar no templo desde àquela hora da tarde. Isso deixava mais aflito o sacristão, acrescentando, é claro, à tagarelice pertinaz da Tereza que não lhe dava trela.
       Entramos os três na sacristia. Souza foi logo acendendo as luzes. Tereza passou reto e foi ao espelho do armário antigo. A peruca pendendo para um lado, deixando ver a mecha branca do cabelo natural. Vaidosa, tirou um pente de osso da bolsa e foi pentear-se, como se estivera num salão de beleza. Quebrou o silêncio, parolando:
       - José, faz anos que, todos os dias, ao entrar na igreja, me deparo com a Dona Chata rezando o terço, quietinha, quietinha. Que mulher santa, não é?! Admirável! Nunca vi tanta fé, tanta piedade numa só pessoa. Você já viu algo assim?
       Malicioso, a ficha do Zé Broínha caiu e, pela primeira vez, ele pôs atenção na fala da Tereza, fazendo-se todo ouvidos e, logo, emitiu seu parecer:
       - Se acho!! Boníssima, esta Dona Chata! Acho mais...Acho não, tenho certeza. Ela tem muito respeito por você.
       - Não diga! Não sabia!!
       - Verdade! Ainda ontem ela me falava de você quando nos viu entrar na Igreja!
       -Estou curiosa! O que foi que ela disse?
       - Ah, ela disse muitas coisas boas a teu respeito. Disse: “– Olha, José, adoro esta mulher que chegou aí com você! É uma excelente cantora, essa Rosária...”
       - Rosária?? Que Rosária?
       - Você! Ah, desculpe-me! Já ia me esquecendo... Ela confunde você com a Rosária Carvalho.
       - Essa mulher está ficando louca?! Canto infinitamente melhor que a Rosária e não me pareço isso aqui com ela...
       Visivelmente contrariada, Tereza pôs-se a morder os lábios – péssimo sinal! O Sacristão, seguro de que se plano não falharia, continuou:
       - Ela me disse, também, que você merece um prêmio pelo bem que faz às crianças e aos animais.
       - Bom, isso ela tem razão. Nunca deixei de cuidar das criancinhas e dos bichinhos da rua e...
       - ... e dela também. Não sabia que você havia cuidado de Dona Chata quando ela ainda era criança, Tereza! Elam me disse isso com lágrimas nos olhos...
       - O quê?? Como cuidei dessa doida? Sou muito mais nova que ela, tenho pouco mais que cinquenta anos...Ela é que é uma velha caduca!
       - Acho que não! – Respondeu o Zé, malicioso. Está completamente lúcida. Lembra-se até que você trabalhou para os padres e que é funcionária dos Pimenta.
       - Isso é demais! Estou me sentindo ofendida. E agora chega! Vou mostrar a essa Chata quem é que sou, de verdade.
       Abriu com fúria a porta da sacristia e desceu os degraus, impaciente.
       Lá embaixo, no primeiro banco, Dona Chata intercalava seu Glória ao Pai com bocejos infinitos, sem perceber a presença da Tereza que chegou pela lateral. Puxando o fio da ladainhas, a cantora interpelava a mulher orante:
       - Então é verdade o que ouvi do José, Chata?
       - Falou comigo, Dona Tereza?
       - Agora é Dona Tereza...Mas, antes, era Rosária Carvalho!!
       - Não estou compreendendo, dona...- e esboçou um sorriso amarelo.
       - Está compreendendo sim, e muito bem! E não me chame de Dona. Sou bem mais nova que você.
       - O que foi que eu fiz?
       - Nada! Apenas me confundiu com uma cantorazinha de terceira e anda dizendo por aí que sou idosa. Mas velha é você! E caduca. Me esqueça, sua chata...
       - Senhor, tende piedade de mim! Eu não fiz nada disso, Dona Tereza, inclusive eu...
       Antes de terminar, um beliscão pôs termo à jaculatória. Sem ouvir os argumentos da outra, Tereza saiu do banco, a alma lavada e a vingança consumada. Entrou na sacristia enquanto eu saía com a chave da torre, mal podendo esperar para puxar as cordas do sino. Passei devagar pelo banco onde estava Dona Chata e fiz genuflexão, quando a ouvi comentar baixinho com uma senhora que acabara de se ajoelhar a seu lado:
       “– Esta cidade está cada dia mais perigosa, muita gente louca solta por aí! Aquela doida – apontou o dedo para a sacristia, de onde se via ao longe a cantora – aplicou-me um beliscão e me disse um tanto que até agora não entendi. Olha o meu braço – e estendeu-o, para mostrar à outra o sinal da beliscadura. – Continuarei frequentando a missa das sete, mas, o terço, vou rezar em casa antes de vir para cá.”
       Minha garotice me fez apressar o passo e tentei conter o riso. O Souza...? Este conseguira marcar mais um ponto nas suas maluquices com a ajuda da Tereza.
       Os dias que se sucederam foram absolutamente tranquilos. O Zé Broinha deixava o emprego às 18 horas e traçava com calma seu itinerário até a Matriz.
       Tereza namorava a Fonte Luminosa, enquanto esperava pelo sacristão com as últimas notícias do dia e com sua indecisão às vésperas das eleições.
       Dona Chata?... Bem! Dona Chata agora rezava seu rosário na porta da casa paroquial e adentrava a Igreja sempre na companhia do vigário, a protestar “– Não se pode mais sair nesta cidade sozinha! Tem muita gente louca solta por aí!...Só gente louca!...”

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