Por: Júlio César da Paz
Já passava das 18 horas quando o Zé Broinha cruzou
a Praça Getúlio Vargas em direção à Matriz. A loja do Seu Duca, como todos os
dias, encerrava o expediente àquela hora. Fechar alguns minutos antes,
impossível! Fazer o quê se aquele trabalho era uma bênção e se o dinheiro no
fim do mês chegava sem atraso? O proprietário – um segundo pai – era amável,
generoso... Mas o salário de sacristão também ajudava, além, é claro, da
satisfação em servir à paróquia e a convivência com os padres e os leigos.
Ouvir os resmungos do Padre Aloísio quase esfriava
o prazer do serviço, principalmente quando, fugindo aos argumentos do
sacristão, ordenava sem pena:
“– Quero a igreja aberta às dezoito horas. Quando
a primeira alma se ajoelhar para a reza do terço, que todas as luzes sejam
acesas, que o altar esteja preparado com os objetos litúrgicos e os sinos
toquem, convidando para a missa.”
Essas palavras faziam tremer o Souza, que corria
feito um louco para não contrariar o vigário. Indiferente ao drama do
sacristão-balconista, eu, ainda adolescente e despreocupado, ficava à espera
dele e acompanhava seus passos apressados para puxar a corda do “Paulino” –
o sino da Matriz que me dava tanta alegria quanto bolhas em tirar-lhe o som.
Também me deliciava com as doidices da Tereza, nossa querida e indomável
cantora, companheira permanente do Zé, que só se deixava irritar se o assunto
fosse a Rosária Carvalho ou algo relacionado à sua idade.
Naquela tarde fria de julho, ela nos acompanhava –
vestido azul, xale branco e um embrulho (Deus sabe de quê) nas mãos – trazendo
as últimas notícias que colhera na rua quando vinha para a Matriz.
- Escute, José! O Beg vai se candidatar? Pois
é...Vai. E o meu voto é dele, claro! O homem é bom! O assessor dele me contou
que ele vai arranjar abrigo pros cães de rua. Ah! Isso é que é coração, não
acha, José?
Ofegante, já subindo a escadaria, Souza concordava
com monossílabos e acenos de cabeça mal planejados, praguejando,
disfarçadamente, contra a única mulher que o estava esperando para acender as
luzes da igreja – a popularmente conhecida Dona Chata. E a Tereza prosseguiu:
- Mas, o Hesse também é bom! Ah! É muito bom!
Pensando bem, meu voto será dele se candidatar-se novamente. Sabe o que me
disseram, José? Que ele vai reformar essa praça aí, inclusive a Fonte Luminosa.
Que beleza, não é? Essa fonte merece uma restauração. E, pensativa exclamava –
Taí! O meu voto é do Hesse!
E o José, agora, entra na Matriz com pressa e as
sandálias a sair-lhe dos pés. Já ouvira uma voz feminina anunciando o primeiro
mistério do terço. Lá no fundo, a silhueta era perceptível, graças à luz
diáfana que adentrava os vitrais. Para variar, a voz trêmula e a figura magra
eram de dona Chata, que comungava diariamente e fazia questão de estar no
templo desde àquela hora da tarde. Isso deixava mais aflito o sacristão,
acrescentando, é claro, à tagarelice pertinaz da Tereza que não lhe dava trela.
Entramos os três na sacristia. Souza foi logo acendendo
as luzes. Tereza passou reto e foi ao espelho do armário antigo. A peruca
pendendo para um lado, deixando ver a mecha branca do cabelo natural. Vaidosa,
tirou um pente de osso da bolsa e foi pentear-se, como se estivera num salão de
beleza. Quebrou o silêncio, parolando:
- José, faz anos que, todos os dias, ao entrar na
igreja, me deparo com a Dona Chata rezando o terço, quietinha, quietinha. Que
mulher santa, não é?! Admirável! Nunca vi tanta fé, tanta piedade numa só
pessoa. Você já viu algo assim?
Malicioso, a ficha do Zé Broínha caiu e, pela
primeira vez, ele pôs atenção na fala da Tereza, fazendo-se todo ouvidos e,
logo, emitiu seu parecer:
- Se acho!! Boníssima, esta Dona Chata! Acho
mais...Acho não, tenho certeza. Ela tem muito respeito por você.
- Não diga! Não sabia!!
- Verdade! Ainda ontem ela me falava de você quando
nos viu entrar na Igreja!
-Estou curiosa! O que foi que ela disse?
- Ah, ela disse muitas coisas boas a teu respeito.
Disse: “– Olha, José, adoro esta mulher que chegou aí com você! É uma excelente
cantora, essa Rosária...”
- Rosária?? Que Rosária?
- Você! Ah, desculpe-me! Já ia me esquecendo... Ela
confunde você com a Rosária Carvalho.
- Essa mulher está ficando louca?! Canto
infinitamente melhor que a Rosária e não me pareço isso aqui com ela...
Visivelmente contrariada, Tereza pôs-se a morder os
lábios – péssimo sinal! O Sacristão, seguro de que se plano não falharia,
continuou:
- Ela me disse, também, que você merece um prêmio
pelo bem que faz às crianças e aos animais.
- Bom, isso ela tem razão. Nunca deixei de cuidar
das criancinhas e dos bichinhos da rua e...
- ... e dela também. Não sabia que você havia
cuidado de Dona Chata quando ela ainda era criança, Tereza! Elam me disse isso
com lágrimas nos olhos...
- O quê?? Como cuidei dessa doida? Sou muito mais
nova que ela, tenho pouco mais que cinquenta anos...Ela é que é uma velha
caduca!
- Acho que não! – Respondeu o Zé, malicioso. Está
completamente lúcida. Lembra-se até que você trabalhou para os padres e que é
funcionária dos Pimenta.
- Isso é demais! Estou me sentindo ofendida. E
agora chega! Vou mostrar a essa Chata quem é que sou, de verdade.
Abriu com fúria a porta da sacristia e desceu os
degraus, impaciente.
Lá embaixo, no primeiro banco, Dona Chata
intercalava seu Glória ao Pai com bocejos infinitos, sem perceber a presença da
Tereza que chegou pela lateral. Puxando o fio da ladainhas, a cantora
interpelava a mulher orante:
- Então é verdade o que ouvi do José, Chata?
- Falou comigo, Dona Tereza?
- Agora é Dona Tereza...Mas, antes, era Rosária
Carvalho!!
- Não estou compreendendo, dona...- e esboçou um
sorriso amarelo.
- Está compreendendo sim, e muito bem! E não me
chame de Dona. Sou bem mais nova que você.
- O que foi que eu fiz?
- Nada! Apenas me confundiu com uma cantorazinha de
terceira e anda dizendo por aí que sou idosa. Mas velha é você! E caduca. Me
esqueça, sua chata...
- Senhor, tende piedade de mim! Eu não fiz nada
disso, Dona Tereza, inclusive eu...
Antes de terminar, um beliscão pôs termo à
jaculatória. Sem ouvir os argumentos da outra, Tereza saiu do banco, a alma
lavada e a vingança consumada. Entrou na sacristia enquanto eu saía com a chave
da torre, mal podendo esperar para puxar as cordas do sino. Passei devagar pelo
banco onde estava Dona Chata e fiz genuflexão, quando a ouvi comentar baixinho
com uma senhora que acabara de se ajoelhar a seu lado:
“– Esta cidade está cada dia mais perigosa, muita
gente louca solta por aí! Aquela doida – apontou o dedo para a sacristia, de
onde se via ao longe a cantora – aplicou-me um beliscão e me disse um tanto que
até agora não entendi. Olha o meu braço – e estendeu-o, para mostrar à outra o
sinal da beliscadura. – Continuarei frequentando a missa das sete, mas, o terço,
vou rezar em casa antes de vir para cá.”
Minha garotice me fez apressar o passo e tentei
conter o riso. O Souza...? Este conseguira marcar mais um ponto nas suas
maluquices com a ajuda da Tereza.
Os dias que se sucederam foram absolutamente
tranquilos. O Zé Broinha deixava o emprego às 18 horas e traçava com calma seu
itinerário até a Matriz.
Tereza namorava a Fonte Luminosa, enquanto esperava
pelo sacristão com as últimas notícias do dia e com sua indecisão às vésperas
das eleições.
Dona Chata?... Bem! Dona Chata agora rezava seu
rosário na porta da casa paroquial e adentrava a Igreja sempre na companhia do
vigário, a protestar “– Não se pode mais sair nesta cidade sozinha! Tem muita
gente louca solta por aí!...Só gente louca!...”